Concepção, storyboard,
performance, figurino, maquiagem,
direção de arte, produção
GUI MAUAD


Direção e Fotografia
NEWTON GOMES


Trilha sonora
Ananda 
Quando Chove no Vale /
Transmissão pro fim do mundo
(KENYA20Hz Remix)


Edição e Montagem
Lucas Ritto


Equipe de produção
Juan Ferreira
Lucas Ritto


Agradecimentos especiais 
Lucas Albuquerque
Zona Imaginária
Instituto Inclusartiz
Ananda
Kenya20HZ
Una



ATO I


A mulher assiste enquanto o homem senta-se à mesa que ela mesma preparou. Ele arregaça suas mangas e começa a comer de maneira mal-educada. Ela o observa atentamente, com olhos tristes. Ele acabou de chegar da rua. Está sujo, desajeitado, pingando de suor.

Já ela, está muito bem vestida. O observa com perplexidade, como quem procura algo que talvez não esteja lá. Ele ignora, continua comendo, sem responder às expectativas dela.

Cansada, ela se levanta aproxima-se de uma janela, de onde se observa o lindo entardecer nos campos do lado de fora. Ela contempla a vista por um tempo e se entristece.

Ao voltar para a mesa de jantar, a mulher serve para seu marido uma estranha sobremesa. Uma fruta – que mais parece invenção de um escultor – tão brilhante e colorida que faz todo o resto do banquete parecer feio e cinzento.

O homem fica curioso com a fruta e a observa enquanto termina de fumar seu charuto. A mulher anda para longe, sem ar algum de dúvida e vai até o lado de fora da casa. Ele não compreende o comportamento esquisito da mulher, mas confia tanto nos dotes culinários de sua esposa, que pega a estranha fruta e dá-lhe uma mordida cheia de vontade. O néctar escorre pelos beiços e suja sua barba e as roupas que veste.




ATO II


No mesmo instante que morde a fruta, como que a mesmo passo, ouve-se um barulho alto vindo de muito longe, e que vai se aproximando da casa. Assustado, ele corre até a janela e de lá vê sua mulher de braços abertos, frente a um enorme cometa azul-brilhante que vem em alta velocidade do espaço, zumbindo como milhares de colônias de abelhas ao mesmo tempo!

A mulher espera ansiosamente enquanto a luz se aproxima e torna-se tão forte que quase não se pode ver nada além das coisas mais escuras que o cometa não conseguiu apagar. A luz torna-se tão forte quanto o estrondo que ocorre quando o asteroide bate com toda força contra ela.

O homem se assusta ao ver, refletido em seus olhos, a luz do espaço-sideral consumir sua esposa. Ultrajado, ele põe uma espécie de roupa de apicultura muito antiga e sai da casa. O macacão branco plastificado é pesado e difícil de colocar, e se completa com uma máscara trançada de todo tipo de palha.

A mulher está num canto, no meio de um rastro de explosão. Ela está envolta no cometa, que na verdade é uma colmeia de abelhas que veio do céu, e quando a atingiu, tornaram-se um só. A colmeia é de cera branca brilhante e translúcida e toda incrustada com um tipo de mineral espacial dourado como ouro. Ela gruda na pele da moça e nela as abelhas fazem morada. Abelhas estranhas, azuis-brilhante (como a luz que as carregava) rodeiam o cometa-colmeia: uma grande e complexa estrutura natural do espaço sideral. Transparente e bioluminescente, com enormes buracos avermelhados dos quais escorrem o mais dourado, lustroso, doce e saboroso mel. Tão brilhante, que mais parece ouro acabando de ser fundido.



ATO III


O homem se aproxima, vestido com sua roupa especial que o protege das pungentes ferroadas das abelhas alienígenas. Mesmo com tudo que se passou, o homem vai até sua amada como quem não a conhece. Ele enche um enorme vidro com o mel da colmeia e vai embora.

Dia após dia, ele volta e enche novamente o pote com o mel dourado. Viciou-se nele. E bebe garrafa após garrafa de cada gota que sua amada sofreu tanto para produzir. Lambuza-se inteiro como um urso que precisa do mel.

A mulher mistura expressões de agonia e desespero com prazer e serventia a seu homem. Hora sente-se incomodada com as abelhas, hora as ama como se fossem suas amigas. Mas agoniza em ter seu corpo hospedado, infectado, usado para produzir o vil prazer de seu frio companheiro. Em seu delírio, finalmente vivem em paz, ele com a roupa, e ela com a colmeia, vivendo em harmonia.

A mulher levanta-se, sem nem saber qual dos dois fins a vida havia lhe mostrado, e vai embora andando com a colmeia no corpo. Como se fosse roupa.


Fim.




BICA +
INSTITUTO INCLUSARTIZ
APRESENTAM





14 OUTUBRO
ATÉ 31 DEZEMBRO

Curadoria de Lucas Albuquerque
Como a cultura drag vem repensando as práticas artísticas contemporâneas? O projeto ARRASTO lança ao público a mesma pergunta feita, no ano passado, às drag queens cariocas Akira Hell, Gui Mauad, Iryna Leblon, Organzza e UNA. Partindo do desejo de extrapolar os limites já tão defasados da arte contemporânea e acreditando na potência de seus projetos, o convite às cinco artistas, que encontraram na performance em drag a canalização de suas investigações artísticas, surge da inconformidade em relação à escassez de estudos e propostas que busquem mapear a interpenetração entre a cultura drag e a arte moderna e contemporânea. Afinal, por onde começar essa linha? Seria leviano considerar como ponto de partida a provocação de gênero colocada por Duchamp na criação do alter ego feminino Rrose Sélavy e nas fotografias de contravenção e experimentação de gênero de Claude Cahun sem antes considerar as práticas teatrais e urbanas de personas contemporâneas a estes, como Madame Satã e muitas outras, ainda desconhecidos pela historiografia? Perguntas como estas rondaram nossos debates ao longo deste ano, tendo a inquietação como força propulsora para os projetos aqui apresentados.

Frente ao desafio de traçar uma teoria drag capaz de abarcar os entendimentos sobre essa performatividade e os seus processos envolvidos, ARRASTO apresenta aqui uma primeira formulação. A fim de comissionar trabalhos individuais com um grupo de drags atuantes no cenário carioca, cujos compreensões acercas da prática performática em torno da manipulação do gênero e da identidade são diferentes entre si, tivemos a oportunidade de, ao longo de um ano, debater textos, ensaios, trabalhos artísticos e entrevistas de outros artistas que lidam com a questão ou com o que se desenha em seu entorno. O pontapé inicial para abordar a questão nasce, portanto, de uma abordagem teórico-metodológica com fins práticos. O resultado disso poderá ser visto quinzenalmente neste site, onde cada uma das artistas é convidada a ocupar com obras inéditas.

Refletindo sobre o próprio termo “drag”, nasce o nome deste projeto. ARRASTO parte tanto de uma das teorias acerca do surgimento da denominação, que remete aos longos vestidos vitorianos usados por atores masculinos que atuavam como personagens femininas no teatro do século XIX, como também da falta de uma palavra em português que abarque o conteúdo semântico da palavra “drag”. Neste último caso, faz uso da literalidade da tradução para, a partir da confusão, estabelecer uma figura de linguagem com o ato de arrastar, cujo sentido denota uma mudança de posição de um objeto com certa carga de fricção. Fazendo do atrito a sua força de resistência, os encontros proporcionados pelas obras aqui apresentadas visam o movimento, a inconstância, o trânsito — tanto cultural e simbólico quanto físico —, mas não abrem mão da ferida causada pelo choque.

A primeira artista a ocupar a página é UNA, que, em seu trabalho, interpenetra tanto o ambiente físico como o digital em busca da criação de uma corporeidade expandida. Para tal, UNA aborda questões de gênero e indumentária a partir da moda, buscando a intersecção entre o camp e o andrógino por meio de sua montação. O projeto "Metamorphosis", que ganha aqui um desdobramento em vídeo, teve início em 2020 enquanto produção audiovisual, reunindo vídeo, performance, arte 3D e produção musical. Nele, a artista busca retratar uma simbiose entre o seu corpo humano em relação à uma forma de vida desconhecida, fazendo conviver as modificações do corpo e seu prolongamento na indumentária. Em “Metamorphosis”, contudo, o orgânico e o inorgânico parecem compartilhar qualidades: a replicação do tecido constrói uma malha viva, rizomática, enquanto o seu corpo é emprestado a uma duplicação virtual, plástica. O conceito de mutação é utilizado como chave de leitura para a performatividade drag, investigando as distintas possibilidades de um corpo em constante expansão.

Ao longo de dez semanas, compartilharemos quinzenalmente ocupações de cada uma das artistas, em consonância com entrevistas individuais e mesas de debate. Findado o período expositivo da 1ª etapa do projeto, está prevista a exibição dos trabalhos gerados para esta exposição, por meio de projeções, em festas LGBTQIAP+ no estado do Rio de Janeiro. Essas, ao longo dos anos, apoiam o cenário drag cedendo seu espaço e fomentando performances, contribuindo de forma ativa para a produção do grupo. Buscamos, portanto, não apenas promover a entrada de artistas da cena noturna no campo das artes visuais, mas propor seu retorno aos espaços de festa e resistência LGBTQIA+ na cidade do Rio, profanando, assim, os dois espaços. Por fim, o projeto aqui apresentado pretende se prolongar ao longo do ano de 2023 em uma exposição coletiva, onde os conceitos mapeados funcionarão como guarda-chuvas conceituais para uma reflexão mais aprofundada sobre a relação entre uma teoria queer e os processos em voga na arte contemporânea brasileira.


Lucas Albuquerque
Curador Independente